domingo, 27 de março de 2011

Sobre o artigo "Activismo" de Alan Greenspan

O recente "artigo" do ex-presidente da Reserva Federal intitulado "Activism" parece ter sido escrito de propósito para justificar o recente comentário de Krugman de que "if you’ve reached the point where you don’t pay attention to anything that might disturb your orthodoxy, you’re not doing science, you’re not even pursuing a discipline. All you’re doing is perpetuating a smug, closed-minded sect."

No seu comentário que foi objecto de grande divulgação mediática para grande agrado da direita conservadora americana Greenspan defende que o "activismo" estatal que está a impedir aquilo que de outro modo seria uma recuperação robusta da actividade da economia dos EUA.

Para fundamentar a esta conclusão Greenspan invoca o resultado de regressões entre o "capex ratio" (que corresponde ao rácio entre o investimento em activos ilíquidos de longo prazo e o cash-flow líquido das empresas) e o rácio de utilização da capacidade produtiva e o défice do orçamento federal ajustado do ciclo. De acordo com os resultados obtidos, Greenspan chega à conclusão que cerca de 26% da variação do capex ratio pode ser "explicada" pelo nível de utilização da capacidade produtiva, enquanto que o défice do orçamento federal "explica" cerca de 18% daquela variação.

Mas, não contente com este facto avança para uma "conclusão" ainda mais bombástica de que entre metade e dois terços da evolução do "capex ratio" será devida ao activismo do Estado. Ora, julgo que vale a pena reproduzir o argumento nas próprias palavras utilizadas por Greenspan (não só para não correr o risco de poderem pensar que o estou a interpretar erradamente mas sobretudo porque acho o raciocínio simplesmente delicioso): "The 0.26 of capex variation attributed to the operating rate is clearly not a function of activism. But none of the remaining three quarters can be so readily dismissed. Corporate executives, in large majorities, identify their current pronounced caution as driven by aversion to activism, a view consistent with their current behaviour that has parallels with the 1930s. The Great Depression was far more devastating than the current crisis. Nonetheless, the parallels between the degree of business angst in those years and today’s capex ratio is supportive of the presumption that ‘activism’ is a likely explanation of the 0.55 unexplained variation in shortfalls in capex, especially in the post-crisis years." (meu sublinhado) daqui inferindo que no mínimo metade, e possivelmente, até três quartos da aversão à iliquidez que justificará a "surpreendente" tepidez da recuperação económica dos EUA resulta das incertezas criadas pelo aumento do activismo do Estado ocorrido desde o colapso da Lehman & Brothers.

Ora se é muito discutível que a regressão entre o "capex ratio" e o défice orçamental ajustado do ciclo permita concluir que quase 20% da variação daquela variável é explicada pela variação do défice orçamental a atribuição da totalidade (ou quase) da variação não explicada pleo nível de utilização da capacidade produtiva ao "activismo estatal" resulta apenas de uma profissão de fé que Greenspan candidamente não hesita em confessar ao referir que "Those of us who see competitive markets, with rare exceptions, as largely self-correcting are most leery of government intervening on an ongoing basis. The churning of markets, a key characteristic of ‘creative destruction’, is evidence not of chaos, but of the allocation of a nation’s savings to investment in the most productively efficient assets – a necessary condition of rising productivity and standards of living". E não negando que, raras por vezes, assim não suceda porque "human nature being what it is, markets often also reflect these fears and exuberances that are not anchored to reality (...) the presumption that intervention can substitute for market flaws, engendered by the foibles of human nature, is itself highly doubtful. Much intervention turns out to hobble markets rather than enhancing them".

E, portanto, o melhor que o Estado tem (deve) fazer é abster-se de intervir para não perturbar o de outro modo inelutável regresso da economia a uma situação de "equilíbrio" de pleno emprego. Neste contexto teórico pré-keynesiano, os mercados garantem sempre, por definição, a recuperação do pleno emprego e a única que poderá impedir esse resultado serão obstáculos ao "livre" funcionamento dos mercados.

Claro que para a "narrativa" ser consistente é ainda necessário explicar o mecanismo pelo qual o activismo estatal perturba os mercados, nomeadamente, nos períodos (como o da grande depressão dos anos 30 e o actual) em que o desemprego é extremamente elevado e, portanto, o efeito clássico de "crowding out" será teoricamente pouco significativo. Embora não desista completamente do argumento do crowding out (invocando, nomeadamente,  a subida das taxas de juro das obrigações com ratings mais baixos, relativamente às quais reconhece, em nota de rodapé que "Contrary to expectations [sic], the cost of capital, whether interest cost (BBB bond yields) or cost of equity (equity premiums), does not help to explain the variations in the capex ratio"), para ultrapassar este "pequeno" obstáculo neste artigo Greenspan justifica o efeito do maior activismo através do aumento da "incerteza" considerando que a intervenção do Estado constitui uma "important economic variable contributing to such heightened risk aversion", referindo mesmo que "unpredictable discretionary government intervention scrambles the prospective underlying supply–demand balance. Speculators, who might add support to a market when it is weakest and hence when their buying is most risky, lose their perspective and withdraw to the sidelines. The mere uncertainty of when, and to what extent, government might intervene raises risk enough to thwart much desirable speculative support for markets".

Isto obviamente que está nos antípodas daquilo que se deveria designar por "ciência", mas é revelador de uma  forma infelizmente muito comum de encarar a macroeconomia, que também afecta muitos "keynesianos", em que, tal como acontecia com o sistema ptolomeico antes da revolução de Copérnico e Galileu, os factos são incapazes de resistir a um "bom" modelo teórico.

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